terça-feira, 6 de abril de 2010

Nós

depois de muita ausência, uma aparição. dessa vez, não é pra falar sobre mim, sobre os meus dias, sobre angústias. o post é dedicado ao trabalho lindo da lu e do marco.


o que é a saudade?

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

na blusa da professora estava escrito:

"eu não devia
dizer
mas esta lua
mas este conhaque...
botam a gente
comovido como o diabo"

e o drummond sabia das coisas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

E eu ia indo por dentro da chuva.

Não dá pra não sentir na pele o frisson. A vontade tranqüila de dançar um tango, um cacuriá ou um carimbó perpassa o mais adormecido fio de cabelo e me sacode os dois dedos d’água que carrego tremulantes no coração. E tudo me arrepia quando me lembro daqueles dias. As saudades causam arrepios – daqueles sotaques vindos do Ceará e de Santa Maria, de todo aquele desespero pela vida e pelo instante. Saudades de tentar descobrir como aquela aura misteriosa, como o inevitável inconsciente se desvendou em amor, e depois se dividiu em pedacinhos pelo Brasil. Pedaços sempre reatados pela certeza do reencontro e das cartas e do porvir. Não me lamento de nada – nem dos oito dias banhados por uma chuva fria e cruel nem da água gelada no chuveiro, cercado por uma caixa enorme de alumínio. Um campus de concentração – um Ausschwitz ao revés. Expectativas às avessas. Assim sendo, não me incomodou tanto o frio da madrugada e eu desprevenida, ainda acreditando nos possíveis 40ºC cariocas. E era inverno! Inverno quente - em ebulição, se quer saber. Ainda me lembro da preguiça e da raivinha marrom daquele “ACORDA! Não vai ficar aí hoje, né? É o primeiro dia!” às onze da noite pra ir dançar. Era quase a mesma voz, no segundo, no terceiro, em todos e no último dia. Sempre sob o mesmo pretexto, sempre me despertando para a vida. E aí vinham a dança e os abraços e os sorrisos tão tão calorosos, fazendo reavivar a lembrança de que valia tanto a pena, que o colchão lá no quarto era frio e solitário, que ele podia esperar e que alguém IA roncar freneticamente ao meu lado. A sinfonia de roncos me matava, mas no dia seguinte só conseguia sorrir. E eu senti Copacabana por perto, vi o vento do mar e as esculturas em areia – tudo tão perfeito e delicado e surreal. Conheci um menino estranho, que faz yoga de calça jeans na areia e já foi chegando criando espaço. Logo de cara, xinguei, bati, desabafei, pedi conselhos e perturbei um tanto, coitado. Vaguei pela Lapa, aleluiamuitobemobrigada, e um mojito me sacudiu as estruturas – e sacudiu os arcos nas fotos fora de foco, tremidas e gargalhadas. Eu estive fora do ar. Eu virei homem por uma noite – My name is Joyce, James Joyce - e me senti bem mais mulher no dia seguinte, grazie. Descobri o quanto é maravilhoso não ter nada entre as pernas na hora de assentar. Aprendi a usar laquê. Gostei de experimentar o contrário, não gostei de beber Ice com sabor de Yakult. Gostei da ginga diferente dos sotaques brasileiros, quis me mudar pro Ceará. Andei na chuva por Niterói em boa companhia, comi pela primeira vez uma esfiha no Habib’s e fiz um pseudopicnic de madrugada que nunca vai sair da memória. Andei por um lugarzinho distante, rodeado por serras em névoa, em plena praia. Vi um ipê florido, comi peixe e não nadei no mar. Vi o Sol umas duas vezes e nunca quis tanto que ele surgisse claro e alto no céu. Ele só surgiu aqui dentro. Surgiu também no Leblon, à noite, depois de algum caos envolvendo malas e um ônibus sacolejando e algumas mãos desajeitadas tentando segurar tudo inutilmente. Foi no festival de jazz e blues no bairro mais charmoso do Rio que vi o Marcelo Camelo bem breve, mas jamais efêmero. Senti um oco de decepção por ter ido ver a versão original de Janta, com a Mallu(ca) Magalhães, e ela não ter se dado o trabalho de subir no palco pra cantar com ele e, mesmo assim, metade da raivinha que sentia dela foi embora. Ela devia gritar menos, falar menos e investir no blues. Até que tem futuro, a menina. Ah! Comi cookies recém-saídos do forno, queimei a mão com matte quente e dormi abraçada em uma garrafa de vodka, que era gelada e aliviava a dor. Conheci um tal poeta que me disse que “só o raso é cool. A dor é Kitsch”, que me trouxe uma dorzinha bem profunda, porém cool, e que ainda por cima tem sotaque bonito. E me doeram os ossos e os músculos e os ânimos de tanto arrastar malas por um chão eterno de pedras. Mas aí eu me lembro que desse chão surgiram passos bonitos de dança e de vida, que por ele se arrastaram malas do Brasil inteiro, carregando roupas do sexo oposto, saias de quadrilha e scarpins inusitados. E então eu amo aquele chão. E então eu nunca mais me esqueço.


domingo, 2 de agosto de 2009

Sobre café e borboletas.

O café, naquele dia, não tinha o costumeiro aroma que desperta de uma noite de sonhos e nem o sabor forte que aguça os sentidos para a realidade. Ele, desgraçada e cinicamente, a fez permanecer em um mundo que não era seu. Os sonhos lhe davam náuseas. Ela podia sentir o cheiro áspero do enxofre, como o que vinha do inferno. Ou talvez fosse somente a carne morta exposta ao sol, pronta para ser devorada no almoço. O transe a dividia entre a realidade e o sonho, entre a mulher e a menina, o almoço e o inferno imaginário. Nada disso era muito bom. Ela tirou os brincos de borboleta das orelhas inflamadas, que tinham como invólucro a pomada transparente.

Mas as borboletas insistiam em perturbar-lhe a mente: estavam lá, fundindo as várias cores em um vôo confuso e desesperado, sem saber em que flor pousar. Talvez as paredes as recebessem com hospitalidade maior e suas cores acalmassem, dormissem, sonhassem.

À mulher o café parecia repugnante: lembrava-lhe que, a qualquer momento, a borboleta adentraria folgada e incisivamente sua xícara verde-musgo, atordoando a calmaria do líquido marrom. A menina queria beber o café. Que engolisse com ele o furacão de borboletas, todas as suas cores efusivas, toda a confusão! A mulher se contentava com a rigidez das paredes frias e seguras para pousar e repousar. Ora, as borboletas não precisavam ser assim, tão exigentes! A menina se deleitava com a fantasia de repousar em campos verdes e enfeitados com as mais vivas e sedosas parasitas, pendessem elas das frondosas árvores ou brotassem do gramado macio. As borboletas ficavam tão mais belas quando vistas assim! Mas a inspiração fugia-lhe num arroubo, num instante de respiração ofegada. E, então, ela arrancava a sianinha dos cabelos e voltava a ser mulher.

Cansada e impaciente, ansiava por chegar ao Topo do Mundo e brincar de ver o sol se pondo por entre as pernas, de cabeça para baixo. Enquanto isso, a menina sacudia-lhe o corpo internamente, querendo libertar-se daquela mulher impenetrável. Mas ela era mesmo impenetrável. A menina estava presa junto às borboletas e gritava. Esperneava. Até que o grito fosse tão alto que se tornasse inaudível.

A mulher conhecia a existência da menina e ignorava-a. Tentava fingir indiferença, afogando suas borboletices em taças caras de Bordeaux. Nem o furacão era capaz de sacudir-lhe as estruturas, somente as flores. A ausência delas. A ausência de um lugar tranqüilo e confortável onde pudesse recostar a cabeça e reconstruir suas asas quebradas. Restou-lhe apenas a espessa e branca parede descascada. A menina fora esquecida. O transe interrompeu-se. Tudo culpa do café.
[àqueles que leram esse texto mais de mil vezes, desculpem-me e desculpem-se por tê-lo lido de novo. ele precisa acompanhar minha mudança de endereço... pra quem o lê pela primeira vez, é de 2006 - quando eu ainda não tinha tido a inspiração assassinada pela teoria]

sábado, 1 de agosto de 2009

Rayuela - só porque me fez arrepiar.



"Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha o seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água. "

(Rayuela, capítulo 7 – Júlio Cortazar)

terça-feira, 19 de maio de 2009

para personne.


"this is my letter for you
but the words get confused
and the conversation dies [...]"


e eu pensei tanto em escrever uma carta contando dos dias em que atravessei a rua e vi tantos rostos diferentes sorrindo para mim! pensar que eu nem sabia que era para você que eu devia escrever. é como se, de repente, todo o nosso passado voltasse à tona e eu me sentisse mais uma vez confortável ao seu redor. é como se eu pudesse te contar sobre tudo e todos, te escrever um conto acidentalmente erótico ou te enviar uma foto do aniversário da minha tia só para mostrar um detalhe do vestido de alguém que me fez lembrar você. foram tantas as vezes em que senti saudades das suas mãos macias, do seu cheiro familiar e da sua voz sempre pronta para mais um conselho ou música boba! e eu sempre me lembro daquele fim de tarde cheio de movimento - se da charrete ao por do sol ou se das gargalhadas, não sei muito bem. aquele fim de tarde que se completou com a noite, sabe? aquela noite de chás exóticos, piscadelas, cartas e cachecóis. me fazem morrer um pouco aquele lago, aquele filme pré-adolescente e toda aquela conversa sobre nunca se esquecer de quem somos ou de tudo o que passamos, sobre como tudo continuaria igual. ilusão. estávamos envolvidas demais para conseguirmos perceber que sentiríamos remorso mais tarde pelas promessas não cumpridas.

não escrevo, porém, para afogar tudo em nostalgia. quero mesmo é te contar que coloquei uma estante nova no meu quarto e que a sua foto se transportou para ela - não te exclui na mudança, ao contrário do que temíamos. AH! ganhei um quadro enorme do casablanca, acho que você iria gostar se visse. é o primeiro item daquele projeto de decoração da sala de TV, que ainda tem as paredes brancas, mas ganhou um sofá melhor. a propósito, meu irmão riscou o sofá com a caneta que você me deu. já dá pra imaginar a satisfação da minha mãe, né? ela pergunta sempre por você e eu digo que não sei, mas a verdade é que eu tenho meus meios de me manter informada sobre como você está. é uma necessidade, sabe? fiquei feliz em ouvir as últimas notícias. sabia que uma hora tudo se acertaria - menos o seu cabelo, que é bonito somente quando incerto. olha, eu preciso te dizer que fiquei emocionada quando nos vimos pela última vez e você fez xixi de porta aberta. talvez essa seja só mais uma coisa que tenha se tornado banal e eu não me dei conta, mas eu não faço xixi na frente de qualquer um. mais: o trabalho de alemão deu certo e eu nunca esqueci que quis ter uma tatuagem desenhada por você. é, certas coisas não perdem a importância.

e eu tenho um medo que só você entenderia: agora sou eu quem vou. ainda não sei quando, mas vou. é essa a hora em que os horizontes se abrem e toda a vida até agora construída se transforma? eu precisava de você para afastar de mim essa ideia de que tudo vai se perder irremediavelmente. você era uma convicção tão forte minha e se perdeu, não foi? o que há de ser do meu presente? não quero ver tantas outras convicções se dissolverem no oceano atlântico à medida em que eu o atravessar. tenho medo da mudança e de que as minhas fotos sejam retiradas das estantes. tenho medo de voltar tão diferente que eu não encontre mais os meus amigos e amores. não tenho mais a ilusão de que tudo vai permanecer igual. o receio é que tudo se quebre, que tudo se torne um imenso buraco de lembranças flutuantes e desconexas, que nada mais faça sentido. eu preciso ir, mas preciso voltar inteira. entende?


não me prolongo, que esta carta é mais impalpável que o nosso próximo abraço. entrego as minhas esperanças à imprevisibilidade e aguardo um grito da vida em resposta. espero da vida que ela te traga para mim, para que eu possa finalmente reaver as minhas convicções e a maciez das suas mãos de massinha. é, é isso.

da sua couve-flor.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

a parede descascada da tal casa quente veio ao meu encontro antes do imaginado e é muito mais aconchegante que qualquer previsão. :)

domingo, 19 de abril de 2009

a verdade é que eu tenho vivido muito o amor dos outros e tenho olhado tudo com uma boca tão doce e queirosa que me apaixonei pela ilusão. agora não sei o que vale a pena relevar, mas pode ser que eu encontre um lugar à parede descascada e cansada de alguma casa quente. se brota um capinzinho no asfalto, por que desistir?

sábado, 18 de abril de 2009

o turista de lua nos olhos.

sabe aqueles textos que te arrepiam o corpo inteiro, aquelas declarações tão sinceras e intensas, tão cheias de lua nos olhos? quisera eu ter escrito o dia 26 de setembro do ano passado dele. quisera eu ter feito parte de tudo isso.

"Sexta-feira, Setembro 26, 2008

because it was at all so warm and tender, because it was the breath beyond the breath, the secret out of all the hipsters that had been here out one day, just to care about you and me and all the people around and it was all so warm and tender. ain't got no more obsession with things that don't exist, because it is all here and it all do exist. tonight, while we were on stage, i felt the movement of the song, the feather out in the mandolin, the soft word at your ear and all the crowd feelin' touched. the song was holdin' everything, with its magic hands that did set us in row to meet each other, one day, and we did it. then, everything got everything, without any magic - if there was not you. giving roses, giving words, giving chords and all the care we leave floatin' in the air everyone can breath. and so do we, little one. let's work it all every day, every single day, with the gentleness we shared since the very first day we met, because even if we didn't know, we love each other since that day. but tonight, it was different. it was more. it was cheerful, it was inevitable, it was lovin' scene between a boy that just found out had found the most important blessing, the definite breeze, most important than anything, because it all turned to a definite blessing - from the song about you and me. right now, right now, my one, i've just had some more minutes with god. he just came as a livin' proof, in the middle of my hopeful
fingers and said: "go to her, stay with her, and be prepared to grow". because now it is all so warm, and deep, and right. i've never been so sure, i've been quite so surprised with so much love. never thought it could get me one day - this way, this measure, this ain't coming back, because ain't no way it is wrong. all the love that is spread when we move our best thoughts to the visions of ourselves. in the couch, in the cloud, in the song, in the concert, in the dance, in the piano, in the life we feel so surprised to be sharing together. because i feel right now a better man, cured, healed and happy. nothing's gonna hold me, nothing's gonna criticize us, nothing's gonna separate us (although life had tried it hard last days we had).

whenever you're feeling lonely, i'll be a whisper at the dancin' mixed shoes. whoever you're talking trostky, i'll be around to get the sweetest kiss. wherever you're dreamin' about roamin', i'll be your walking boots. whatever you're thinkin' of love, i'll be the truest touch.
such
a
chill.

the purest thought of a man.


(got out in g. ortiz street with the moon in my eyes).

#
posted by O Turista : 01:44"

terça-feira, 31 de março de 2009

uma taça de santa carolina.

essa é uma daquelas fases da vida em que tudo o que não se enxerga são formigas. elas te sobem pelo pescoço, te incomodam a calmaria da pele e não há nada que se possa fazer além de se estapear até que, sob a severa ilusão de que elas se foram, você se satisfaça e esqueça o que te incomoda. as formigas estão por toda parte, inclusive andando sobre os registros do seu passado, fazendo cosquinhas na sua memória, querendo colori-la de verde e branco e vermelho e azul e de todas as cores que te remetem ao cheiro daqueles doces e que já se haviam deixado da cor de um retrato muito, muito antigo. elas estão dentro do meu umbigo, saindo dos meus ouvidos e me roendo a lembrança de um dia bom e cheio de pernas. se elas ao menos deixassem em paz o calor daquelas pernas!




(vai sem revisão, mesmo. assim, como álvaro de campos, instrumento através do qual fernando pessoa se permitia derramar palavras sem remoê-las)

quarta-feira, 11 de março de 2009

silly school poem.

sometimes I do miss you.
it's less than I've expected,
that's true.
but, when I do,
all I miss is the heat of your neck ,
the dots on your back
and the ones on your chest too.
and I miss your smile,
the warmth of your gaze meeting mine.
but that's just for a while,
till I figure out that
the one I miss the most is me.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Para uma avenca partindo.

Não - mais uma vez, não é um texto meu. Falta de originalidade? Original ninguém nunca foi, no sentido real da palavra. Até mesmo quem descobriu um novo planeta não o fez sozinho. Então, cedo à falta de paciência com os meus próprios pensamentos e aproprio-me do texto alheio. Não nego que deveria sentar, cerebrar acerca de assuntos, sejam eles existenciais ou de ordem fútil, e escrever. Deixar minar da minha massa cinzenta algo que satisfizesse as minhas exigências. Mas, ah, quem me conhece sabe: sempre fui muito dura comigo mesma. Sem mais, segue uma crônica de um cara que eu admiro um tanto, não sei se pela visceralidade com que redige, se pela amarga pungência evocada pelos contos, se por não ter pudores e ainda assim conseguir ser delicado. Ou se tudo isso junto e mais um pouco. Aproveitem!


"Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viveras superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um diadestes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê."

[Caio Fernando Abreu - Para uma avenca partindo]