sexta-feira, 21 de agosto de 2009

na blusa da professora estava escrito:

"eu não devia
dizer
mas esta lua
mas este conhaque...
botam a gente
comovido como o diabo"

e o drummond sabia das coisas.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

E eu ia indo por dentro da chuva.

Não dá pra não sentir na pele o frisson. A vontade tranqüila de dançar um tango, um cacuriá ou um carimbó perpassa o mais adormecido fio de cabelo e me sacode os dois dedos d’água que carrego tremulantes no coração. E tudo me arrepia quando me lembro daqueles dias. As saudades causam arrepios – daqueles sotaques vindos do Ceará e de Santa Maria, de todo aquele desespero pela vida e pelo instante. Saudades de tentar descobrir como aquela aura misteriosa, como o inevitável inconsciente se desvendou em amor, e depois se dividiu em pedacinhos pelo Brasil. Pedaços sempre reatados pela certeza do reencontro e das cartas e do porvir. Não me lamento de nada – nem dos oito dias banhados por uma chuva fria e cruel nem da água gelada no chuveiro, cercado por uma caixa enorme de alumínio. Um campus de concentração – um Ausschwitz ao revés. Expectativas às avessas. Assim sendo, não me incomodou tanto o frio da madrugada e eu desprevenida, ainda acreditando nos possíveis 40ºC cariocas. E era inverno! Inverno quente - em ebulição, se quer saber. Ainda me lembro da preguiça e da raivinha marrom daquele “ACORDA! Não vai ficar aí hoje, né? É o primeiro dia!” às onze da noite pra ir dançar. Era quase a mesma voz, no segundo, no terceiro, em todos e no último dia. Sempre sob o mesmo pretexto, sempre me despertando para a vida. E aí vinham a dança e os abraços e os sorrisos tão tão calorosos, fazendo reavivar a lembrança de que valia tanto a pena, que o colchão lá no quarto era frio e solitário, que ele podia esperar e que alguém IA roncar freneticamente ao meu lado. A sinfonia de roncos me matava, mas no dia seguinte só conseguia sorrir. E eu senti Copacabana por perto, vi o vento do mar e as esculturas em areia – tudo tão perfeito e delicado e surreal. Conheci um menino estranho, que faz yoga de calça jeans na areia e já foi chegando criando espaço. Logo de cara, xinguei, bati, desabafei, pedi conselhos e perturbei um tanto, coitado. Vaguei pela Lapa, aleluiamuitobemobrigada, e um mojito me sacudiu as estruturas – e sacudiu os arcos nas fotos fora de foco, tremidas e gargalhadas. Eu estive fora do ar. Eu virei homem por uma noite – My name is Joyce, James Joyce - e me senti bem mais mulher no dia seguinte, grazie. Descobri o quanto é maravilhoso não ter nada entre as pernas na hora de assentar. Aprendi a usar laquê. Gostei de experimentar o contrário, não gostei de beber Ice com sabor de Yakult. Gostei da ginga diferente dos sotaques brasileiros, quis me mudar pro Ceará. Andei na chuva por Niterói em boa companhia, comi pela primeira vez uma esfiha no Habib’s e fiz um pseudopicnic de madrugada que nunca vai sair da memória. Andei por um lugarzinho distante, rodeado por serras em névoa, em plena praia. Vi um ipê florido, comi peixe e não nadei no mar. Vi o Sol umas duas vezes e nunca quis tanto que ele surgisse claro e alto no céu. Ele só surgiu aqui dentro. Surgiu também no Leblon, à noite, depois de algum caos envolvendo malas e um ônibus sacolejando e algumas mãos desajeitadas tentando segurar tudo inutilmente. Foi no festival de jazz e blues no bairro mais charmoso do Rio que vi o Marcelo Camelo bem breve, mas jamais efêmero. Senti um oco de decepção por ter ido ver a versão original de Janta, com a Mallu(ca) Magalhães, e ela não ter se dado o trabalho de subir no palco pra cantar com ele e, mesmo assim, metade da raivinha que sentia dela foi embora. Ela devia gritar menos, falar menos e investir no blues. Até que tem futuro, a menina. Ah! Comi cookies recém-saídos do forno, queimei a mão com matte quente e dormi abraçada em uma garrafa de vodka, que era gelada e aliviava a dor. Conheci um tal poeta que me disse que “só o raso é cool. A dor é Kitsch”, que me trouxe uma dorzinha bem profunda, porém cool, e que ainda por cima tem sotaque bonito. E me doeram os ossos e os músculos e os ânimos de tanto arrastar malas por um chão eterno de pedras. Mas aí eu me lembro que desse chão surgiram passos bonitos de dança e de vida, que por ele se arrastaram malas do Brasil inteiro, carregando roupas do sexo oposto, saias de quadrilha e scarpins inusitados. E então eu amo aquele chão. E então eu nunca mais me esqueço.


domingo, 2 de agosto de 2009

Sobre café e borboletas.

O café, naquele dia, não tinha o costumeiro aroma que desperta de uma noite de sonhos e nem o sabor forte que aguça os sentidos para a realidade. Ele, desgraçada e cinicamente, a fez permanecer em um mundo que não era seu. Os sonhos lhe davam náuseas. Ela podia sentir o cheiro áspero do enxofre, como o que vinha do inferno. Ou talvez fosse somente a carne morta exposta ao sol, pronta para ser devorada no almoço. O transe a dividia entre a realidade e o sonho, entre a mulher e a menina, o almoço e o inferno imaginário. Nada disso era muito bom. Ela tirou os brincos de borboleta das orelhas inflamadas, que tinham como invólucro a pomada transparente.

Mas as borboletas insistiam em perturbar-lhe a mente: estavam lá, fundindo as várias cores em um vôo confuso e desesperado, sem saber em que flor pousar. Talvez as paredes as recebessem com hospitalidade maior e suas cores acalmassem, dormissem, sonhassem.

À mulher o café parecia repugnante: lembrava-lhe que, a qualquer momento, a borboleta adentraria folgada e incisivamente sua xícara verde-musgo, atordoando a calmaria do líquido marrom. A menina queria beber o café. Que engolisse com ele o furacão de borboletas, todas as suas cores efusivas, toda a confusão! A mulher se contentava com a rigidez das paredes frias e seguras para pousar e repousar. Ora, as borboletas não precisavam ser assim, tão exigentes! A menina se deleitava com a fantasia de repousar em campos verdes e enfeitados com as mais vivas e sedosas parasitas, pendessem elas das frondosas árvores ou brotassem do gramado macio. As borboletas ficavam tão mais belas quando vistas assim! Mas a inspiração fugia-lhe num arroubo, num instante de respiração ofegada. E, então, ela arrancava a sianinha dos cabelos e voltava a ser mulher.

Cansada e impaciente, ansiava por chegar ao Topo do Mundo e brincar de ver o sol se pondo por entre as pernas, de cabeça para baixo. Enquanto isso, a menina sacudia-lhe o corpo internamente, querendo libertar-se daquela mulher impenetrável. Mas ela era mesmo impenetrável. A menina estava presa junto às borboletas e gritava. Esperneava. Até que o grito fosse tão alto que se tornasse inaudível.

A mulher conhecia a existência da menina e ignorava-a. Tentava fingir indiferença, afogando suas borboletices em taças caras de Bordeaux. Nem o furacão era capaz de sacudir-lhe as estruturas, somente as flores. A ausência delas. A ausência de um lugar tranqüilo e confortável onde pudesse recostar a cabeça e reconstruir suas asas quebradas. Restou-lhe apenas a espessa e branca parede descascada. A menina fora esquecida. O transe interrompeu-se. Tudo culpa do café.
[àqueles que leram esse texto mais de mil vezes, desculpem-me e desculpem-se por tê-lo lido de novo. ele precisa acompanhar minha mudança de endereço... pra quem o lê pela primeira vez, é de 2006 - quando eu ainda não tinha tido a inspiração assassinada pela teoria]

sábado, 1 de agosto de 2009

Rayuela - só porque me fez arrepiar.



"Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha o seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água. "

(Rayuela, capítulo 7 – Júlio Cortazar)