domingo, 2 de agosto de 2009

Sobre café e borboletas.

O café, naquele dia, não tinha o costumeiro aroma que desperta de uma noite de sonhos e nem o sabor forte que aguça os sentidos para a realidade. Ele, desgraçada e cinicamente, a fez permanecer em um mundo que não era seu. Os sonhos lhe davam náuseas. Ela podia sentir o cheiro áspero do enxofre, como o que vinha do inferno. Ou talvez fosse somente a carne morta exposta ao sol, pronta para ser devorada no almoço. O transe a dividia entre a realidade e o sonho, entre a mulher e a menina, o almoço e o inferno imaginário. Nada disso era muito bom. Ela tirou os brincos de borboleta das orelhas inflamadas, que tinham como invólucro a pomada transparente.

Mas as borboletas insistiam em perturbar-lhe a mente: estavam lá, fundindo as várias cores em um vôo confuso e desesperado, sem saber em que flor pousar. Talvez as paredes as recebessem com hospitalidade maior e suas cores acalmassem, dormissem, sonhassem.

À mulher o café parecia repugnante: lembrava-lhe que, a qualquer momento, a borboleta adentraria folgada e incisivamente sua xícara verde-musgo, atordoando a calmaria do líquido marrom. A menina queria beber o café. Que engolisse com ele o furacão de borboletas, todas as suas cores efusivas, toda a confusão! A mulher se contentava com a rigidez das paredes frias e seguras para pousar e repousar. Ora, as borboletas não precisavam ser assim, tão exigentes! A menina se deleitava com a fantasia de repousar em campos verdes e enfeitados com as mais vivas e sedosas parasitas, pendessem elas das frondosas árvores ou brotassem do gramado macio. As borboletas ficavam tão mais belas quando vistas assim! Mas a inspiração fugia-lhe num arroubo, num instante de respiração ofegada. E, então, ela arrancava a sianinha dos cabelos e voltava a ser mulher.

Cansada e impaciente, ansiava por chegar ao Topo do Mundo e brincar de ver o sol se pondo por entre as pernas, de cabeça para baixo. Enquanto isso, a menina sacudia-lhe o corpo internamente, querendo libertar-se daquela mulher impenetrável. Mas ela era mesmo impenetrável. A menina estava presa junto às borboletas e gritava. Esperneava. Até que o grito fosse tão alto que se tornasse inaudível.

A mulher conhecia a existência da menina e ignorava-a. Tentava fingir indiferença, afogando suas borboletices em taças caras de Bordeaux. Nem o furacão era capaz de sacudir-lhe as estruturas, somente as flores. A ausência delas. A ausência de um lugar tranqüilo e confortável onde pudesse recostar a cabeça e reconstruir suas asas quebradas. Restou-lhe apenas a espessa e branca parede descascada. A menina fora esquecida. O transe interrompeu-se. Tudo culpa do café.
[àqueles que leram esse texto mais de mil vezes, desculpem-me e desculpem-se por tê-lo lido de novo. ele precisa acompanhar minha mudança de endereço... pra quem o lê pela primeira vez, é de 2006 - quando eu ainda não tinha tido a inspiração assassinada pela teoria]

2 comentários:

Marcolino disse...

luv it so very much *.*

Índigo disse...

uau! muito bom joh! teoria deixa a gente chato, exigente e menos ingênuo... mas eu realmente gostei! literariamente teórico ou não :)